A discussão sobre a chamada adultização ganhou força no debate público nas últimas semanas. O termo é usado para descrever a imposição de comportamentos, responsabilidades e expectativas adultas sobre crianças e adolescentes, segundo a Fundação Abrinq.
Embora o tema tenha vindo à tona em vídeo de um influenciador digital, especialistas da saúde e da educação e instituições dedicadas à infância e à adolescência abordam, há anos, os impactos negativos da exposição e da presença de crianças e adolescentes em ambientes digitais. A questão reacende a urgência de reflexão e de ação por parte de famílias, educadores e formuladores de políticas públicas, e do fortalecimento da educação midiática como ferramenta de proteção e conscientização da sociedade.
Leia a notícia: Como educar e proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais
Infância e adolescência nas redes
É cada vez mais comum que crianças e adolescentes sejam protagonistas de conteúdo impróprio nas redes sociais. E apesar das plataformas digitais terem determinado idade mínima para contas, muitos adultos acabam ignorando a regulamentação.
Leia a notícia: DIX: como educadores e famílias podem orientar jovens com perfis privados nas redes sociais
De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, 93% das crianças e adolescentes brasileiros de 9 a 17 anos são usuários de internet, fazendo parte da cultura digital. Destes, 98% a utilizam pelo celular e mais de 97% acessam de casa.
Para Barbara Bittar e Janaína Isidro, ambas psicólogas do Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Unidades Escolares da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (NIAP/SME-Rio), o ambiente digital torna a questão da adultização ainda mais preocupante e envolve três principais pontos:
- Exposição em perfis monetizados e viralizados: a exposição de crianças e adolescentes, com perfis próprios ou de adultos da família, monetizados e viralizados, em redes sociais, contribui para naturalização e reprodução de comportamentos adultizados, como músicas, roupas e atitudes ligadas à aparência e à sexualidade.
- Consumo de conteúdos inadequados: o consumo de conteúdo adulto, sem mediação, não indicado para a faixa etária, como nudez, pornografia, discurso de ódio e violência extrema, também favorecem comportamentos adultizados.
- “Sharenting”: o ato de mães, pais ou responsáveis postarem fotos e vídeos de seus filhos(as) nas redes sociais pode estar violando o direito à privacidade de crianças e adolescentes. Existe ainda o risco dessas imagens serem utilizadas por terceiros sem consentimento.
No Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/1990, que define os direitos fundamentais deste grupo social, há regulação sobre a exploração de imagem.
“Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.”
De acordo com a ONG SaferNet Brasil, que atua na proteção de direitos humanos na internet, a exposição de crianças em redes sociais pode representar riscos graves: desde a coleta de dados até o uso indevido de imagens em contextos criminosos. Em relatórios recentes, a organização reforça que a superexposição amplia vulnerabilidades relacionadas à exploração sexual infantil online.
Prejuízos ao desenvolvimento
Segundo as psicólogas entrevistadas, a adultização e a presença em ambientes digitais pode gerar extremo prejuízo ao desenvolvimento infantil, com consequências para toda a vida.
“Esse fenômeno vulnerabiliza esse público retirando-lhes direitos fundamentais, como o direito ao brincar e à própria educação, quando a produção de conteúdo para as redes sociais torna-se uma ocupação para essas crianças e adolescentes.”
Para elas, a temática não está ligada apenas à sexualização precoce:
“Este é um dos elementos graves desse fenômeno, que não deve ser banalizado, porque pode mascarar ou criar contextos para outros tipos de violências e violações de direitos contra crianças e adolescentes, como a exploração sexual, o trabalho infantil, a exposição à pornografia, a idealização de padrões de beleza.”
Impactos no desenvolvimento socioemocional
Pesquisadores destacam que a exposição precoce ao olhar público e às pressões de desempenho nas redes pode afetar diretamente o desenvolvimento socioemocional de crianças e adolescentes. Isso inclui competências como autoconhecimento, autorregulação, empatia e habilidades de relacionamento, todas reconhecidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que orienta a educação básica brasileira, como essenciais para a formação integral de um indivíduo.
Ao serem submetidas a padrões estéticos ou comportamentais adultos, crianças e adolescentes podem desenvolver inseguranças, ansiedade e dificuldades de pertencimento. Bárbara e Janaína complementam:
“As redes sociais incutem valores de performance, idealização de vidas perfeitas, quantificação de aprovação, como ‘likes’ e difusão de modelos identitários. Em meninas pode trazer repercussões na autoimagem, na busca por padrões de beleza inalcançáveis, produzindo quadros depressivos, ansiogênicos e até de violência autoprovocada. Nos meninos percebe-se a filiação à discursos misógino e de ódio, bem como a cooptação por grupos extremistas de incitação à violência contra grupos ditos minoritários.”
Educação midiática como proteção
Organismos internacionais, como a UNESCO, defendem a educação midiática e informacional como ferramenta essencial para lidar com os riscos da era digital. A organização afirma que “a alfabetização midiática prepara cidadãos para acessar, analisar e produzir informações de forma ética e segura, protegendo-os contra desinformação e violação de direitos”.
A BNCC também prevê, na quinta das dez competências gerais, o uso crítico e responsável das tecnologias digitais, reforçando a alfabetização digital como prioridade.
Para Barbara e Janaína, a educação socioemocional e a educação midiática estão intrinsecamente ligadas. A educação midiática não deve se basear apenas na proibição de acesso a telas e à utilização de tecnologias, mas na orientação sobre o uso e comportamento em ambiente digital.
“A restrição do uso de celulares na escola foi uma medida importante para o processo de ensino e aprendizagem, porém o debate sobre esse uso deve estar presente no cotidiano da escola. A educação midiática traz essa dimensão, o quanto precisamos estar atentos com nossa interação digital e desenvolver capacidade crítica sobre tudo que é visto e compartilhado pelos adolescentes e mesmo por crianças, que mesmo quando fora desse ambiente, têm contato com a repercussão de ‘trends’ e ‘memes’ presentes na cultura.”
Família, escola e cultura digital
Mais do que proibir ou restringir o uso das redes, a proposta da educação midiática é construir consciência. Como destaca a SaferNet, proteger crianças e adolescentes online não depende apenas de leis e filtros tecnológicos, mas também de uma mudança cultural que envolva famílias, educadores e plataformas digitais. Ao ensinar crianças a interpretar mídias, e adultos a refletirem antes de expor, cria-se uma rede de proteção que vai além da lei e da tecnologia.
Na prática, para barrar a adultização e proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais famílias e escolas podem:
- Dialogar sobre privacidade: explicar para crianças e adolescentes que nem tudo deve ser compartilhado online.
- Reforçar a autonomia crítica: estimular o questionamento dos conteúdos que consomem, inclusive os de entretenimento infantil.
- Estabelecer limites claros: combinar regras para uso de redes sociais, tempo de tela e autorização prévia de postagens.
Políticas públicas em debate
O Projeto de Lei nº 2.628/2022, chamado agora de “PL contra a adultização de crianças”, foi aprovado no Senado em dezembro de 2024 e votado pela Câmara em agosto de 2025. Como a proposta recebeu mudanças na Câmara, ela voltou para apreciação final no Senado.
O projeto estabelece uma série de medidas para proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais, com foco na prevenção de crimes, como exploração sexual, assédio, exposição a jogos de azar e publicidade predatória. O texto define regras para a supervisão parental, coleta de dados, uso de publicidade e controle de acesso por meio da verificação de idade, além de prever penalidades severas em caso de descumprimento, como multas e proibição de atividades.
A alteração mais significativa propõe a criação de uma autoridade nacional autônoma para regulamentar e fiscalizar a aplicação da nova legislação.
Responsabilidade das plataformas
As plataformas digitais passam a ter responsabilidade legal clara e objetiva: deverão adotar medidas razoáveis para impedir o acesso de crianças e adolescentes a conteúdos ilegais ou impróprios, além de remover imediatamente conteúdos ofensivos quando notificados por vítimas, seus representantes ou entidades de proteção. Essa responsabilização marca uma mudança importante ao exigir ação concreta das empresas de tecnologia, mesmo sem ordem judicial.
O projeto busca adaptar e aplicar princípios já presentes no ECA ao contexto digital, garantindo um ambiente online mais seguro para as novas gerações.
Um desafio coletivo
É imprescindível para o combate à adultização e à exposição digital de crianças e adolescentes a criação de novas leis e o reforço da responsabilidade das plataformas digitais. Está em jogo a garantia de direitos fundamentais já previstos no ECA, como o direito à proteção integral, à privacidade, à dignidade, ao brincar e à educação. Esses direitos, quando violados em ambientes digitais, fragilizam o desenvolvimento socioemocional e colocam em risco a cidadania e, em casos mais graves, a vida de crianças e adolescentes.
A educação midiática, nesse contexto, surge como ferramenta essencial. Mais do que restringir telas ou impor barreiras tecnológicas, trata-se de promover consciência crítica, autonomia e segurança, preparando as novas gerações para compreender, interpretar e interagir com os meios digitais de forma saudável. Famílias, escolas, governos e plataformas precisam compartilhar responsabilidades para que a infância seja vivida em sua integridade.
**
Oportunidade de formação para educadores
Profissionais da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro interessados em se aprofundar na temática podem, de 03/09 a 24/10, se inscrever no curso Violências entre estudantes: convivências na escola e nas redes sociais. Oferecido pelo NIAP, o curso é na modalidade de Educação à distância pela Plataforma EAD/EPF.
Fontes:
Adultização: o que significa e o que causou a polêmica; entenda | CNN Brasil
Projeto prevê regras para proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais - Notícias - Portal da Câmara dos Deputados
Câmara aprova projeto contra adultização de crianças nas redes
Media and Information Literacy | UNESCO
Safernet