A indústria dos quadrinhos ainda nem havia nascido, mas, no início do século XX, um carioca já usava o recurso da narrativa sequencial em quadros para representar uma ideia. Era Raul Pederneiras (1874-1953), uma das figuras mais celebradas da imprensa do Rio de Janeiro entre 1900 e 1930. Na opinião do jornalista Gonçalo Junior, autor de vários livros sobre cartoon, cinema e artes gráficas, Pederneiras merece ser lembrado como um dos pais da história em quadrinhos brasileira.
Patrono da escola municipal localizada na Rua Ponto Chique, no bairro de Cordovil (4ª CRE), o cartunista, ilustrador e escritor também foi professor de Fisiologia Artística da Escola Nacional de Belas Artes e de Direito Internacional da antiga Universidade do Brasil. Mas, talvez, sua maior capacidade tenha sido a de transitar pelas ambiguidades do jornalismo de sua época, que, de um lado, exigia interagir com o mundo culto e erudito das elites e, de outro, com a voz, a cultura e os personagens populares das ruas.
Raul viveu numa época em que o país, a cidade e a imprensa atravessavam processos de grandes mudanças. Além da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República, o Rio passava pelas reformas do então prefeito Pereira Passos, que tinha como uma de suas principais missões a construção de um ambiente e de um imaginário conectados com a modernidade e com os avanços tecnológicos do primeiro mundo. Aos jornais e revistas cabia não apenas captar todas essas transformações. Cabia, também, absorver as inovações das técnicas de impressão, que impunham novos caminhos para as artes visuais, e atender à demanda da nova indústria da publicidade, que exigia a geração de conteúdos capazes de agradar a um público cada vez mais amplo e heterogêneo.
Dentro desse contexto, as representações visuais e humorísticas começaram a ganhar papel de relevo na popularização dos veículos de comunicação e na construção do imaginário do país. Pederneiras foi um dos pioneiros e expoentes dessa tarefa, que requeria, sobretudo, negociar valores e sentidos com a elite: em relação à visão sobre o humor – até então só aceitável quando usado como um recurso do romance ou da peça teatral – e às vozes e aos personagens da rua. Afinal, negava-se a cultura popular para não macular a imagem da “cidade civilizada”, almejada pelas reformas urbanas de Pereira Passos.
Produção e estilo
O primeiro trabalho impresso de Raul, como costumava assinar sua obra, data de 1898, aos 24 anos. Foi uma charge publicada no periódico Mercúrio, que explorava o cotidiano da cidade e exibia seu inconfundível estilo, marcado por trocadilhos, frases curtas e visão aguçada sobre as novidades da época. Nela, um idoso bem trajado pergunta, em tom de flerte, para uma bela jovem: “A senhora quer tomar alguma coisa?”. Rapidamente e meio assustada, ela responde: “Quero, sim. O bonde”.
A charge ganhou a conotação de uma verdadeira revolução na técnica de ilustração da época, não só por ser colorida, mas também por sinalizar um caminho visual para os veículos impressos, que buscavam se tornar mais atrativos e populares. Seu pioneirismo rendeu frutos profissionais praticamente imediatos. Em pouco tempo, ele se tornou figura conhecida na capital da República em razão de sua intensa e assídua produção em diversos periódicos do Rio, como a Revista da Semana, O Tagarela, Fon-Fon, O Malho, D. Quixote, Jornal do Brasil...
A maturidade profissional de Raul começou no semanário Fon-Fon, no qual acabou compondo, ao lado de outros dois notáveis ilustradores – J. Carlos e K. Lixto –, o trio mais famoso da cidade nos tempos da Belle Époque. Nesse veículo, que se propunha ser “alegre, político, crítico e esfuziante”, ele, além de chargista, também era cronista de humor. Na seção Fragmentos do Novo Dicionário, a ironia e a crítica político-social davam o tom dos verbetes. É o caso de “Nilo”, que, em referência ao então vice-presidente da República, Nilo Peçanha (que ocultava a sua origem negra), foi definido como: “Rio africano de origens desconhecidas que atravessa o estado do Rio de Janeiro e desemboca na Vice-Presidência da República”.
A vocação para criar trocadilhos a partir da observação social e política do cotidiano rendeu outras publicações, como o livro Geringonça Carioca: Verbete para um Dicionário de Gíria. Homem de múltiplas vocações, Raul também foi pintor (usava, preferencialmente, a aquarela), teatrólogo, poeta, professor, delegado de polícia e jurista.