Boas PráticasFERNANDA DA CONCEICAO DE QUEIROZ DOS SANTOS
Formada em Letras Português/ Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-graduada em Ciências Humanas e Sociais aplicadas e Mundo do Trabalho pela UFPI e Mestre em Educação pelo Colégio Pedro II. Atua como professora de Educação Infantil há treze anos na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e faz parte do Grupo de Estudos GE Crianças negras na Educação Infantil. Há mais de dez anos Investiga e aplica a literatura antirracista na educação infantil, contribuindo para a formação de educadores e a promoção de uma educação comprometida com a diversidade e a valorização das culturas afro-brasileiras na Educação Infantil.
CARGO/FUNÇÃO DO AUTOR:Professora de Educação Infantil
Este relato apresenta as práticas pedagógicas antirracistas realizadas durante o ano letivo de 2024 no Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Wallace Leandro de Souza, onde leciono. Identifiquei a necessidade de ampliar minhas práticas antirracistas para as crianças pequenas e bem pequenas, com o intuito de promover momentos de reflexão sobre respeito e diversidade. Foi então que, na organização do Projeto Político Pedagógico da escola, refletimos sobre como organizar as ações que priorizassem a aplicação das Leis 10.639/2003 e 11.645/08 durante todo o ano letivo de 2024.
A partir das reflexões no último Centro de Estudos de 2023, foi proposto que trabalharíamos de maneira contínua as culturas afro-brasileira e indígena durante todo o ano de 2024, e todas as turmas realizariam propostas pedagógicas específicas de acordo com seus agrupamentos.
A estratégia central para a proposta direcionada às relações étnico-raciais na unidade foi a confecção de uma Caixa Étnico-Racial, com o objetivo de organizar diversos materiais, como livros, bonecas, instrumentos, tecidos e portfólios, no intuito de viabilizar o uso desses materiais por todas as turmas do EDI. Nela havia: livros de literatura infantil afro-brasileira e indígena; bonecas negras, refletindo a diversidade étnica; alguns instrumentos musicais ligados às culturas afro-brasileira e indígena; giz de cera em tons variados de pele, com a finalidade de promover a representatividade nas produções artísticas; tecidos com padrões e estampas étnicas; e imagens das culturas africana e indígena acompanhadas de explicações sobre seus significados. Esta caixa foi compartilhada com todas as turmas da unidade ao longo do ano.
Durante o ano letivo, apresentamos para as crianças a cultura indígena por meio de vídeos sobre os povos indígenas, com o intuito de mostrar as vivências de algumas delas. Realizamos diversas rodas de leitura, trabalhando textos e imagens da cultura indígena do Brasil. As crianças foram imersas em contextos que dialogavam com as vivências desta etnia, tendo como enfoque principal o contato e o respeito com a natureza. Durante todo o ano, elas foram orientadas sobre o cuidado com o meio ambiente.
Apresentei aos meus alunos as transformações de alimentos, como o milho que foi transformado em pipoca, e também a batata-doce, a macaxeira e a tapioca, que puderam degustar.
As crianças aprenderam sobre pigmentações naturais e quais materiais poderiam ser utilizados para criar tintas, como carvão, argila e cúrcuma. Elas também produziram suas próprias tintas naturais, utilizando açafrão, e realizaram pinturas livres com elas.
Propomos às famílias a confecção de instrumentos musicais, como pau-de-chuva e tambores, e realizamos uma grande roda de música entre as crianças e suas famílias, utilizando os instrumentos produzidos.
Durante o segundo semestre, como cursista da formação Território Educador, promovida pela Gerência de Relações Étnico-Raciais em parceria com o Projeto SETA, fui responsável por organizar uma palestra de formação para as relações étnico-raciais com o tema: “O que é ser um educador antirracista? A literatura como fonte de descobertas”, destinada às professoras da unidade. O propósito foi multiplicar os saberes compartilhados no curso Territórios.
Ao longo do ano, propus à minha turma de maternal II diversas atividades pedagógicas lúdicas que integraram as temáticas afro-brasileira e indígena na rotina cotidiana da sala de aula. Realizamos momentos de contação de histórias, convidando as crianças a ouvirem narrativas que celebravam a diversidade cultural e abordavam aspectos das culturas afro-brasileira e indígena.
Exploramos imagens de símbolos culturais presentes nessas culturas, explicando seus significados, como o Sankofa, o Black Power, o Baobá e os grafismos indígenas e africanos. Isso permitiu que as crianças reconhecessem e valorizassem esses elementos em sua riqueza simbólica.
Propus diversas atividades sensoriais e gastronômicas, apresentando às crianças alimentos típicos das culturas indígenas, criando um ambiente de descoberta e apreciação cultural por meio dos sentidos. As crianças puderam refletir sobre a origem desses alimentos, muitas vezes presentes no cotidiano delas e de suas famílias.
Foi realizado o cultivo de alguns alimentos na horta da escola, construída com a participação das famílias, com o intuito de apresentar às crianças os processos de plantio. Isso proporcionou vivências próximas à natureza, aprendendo também a respeitá-la. As crianças tinham a possibilidade de mexer na terra e brincar com sementes, folhas e outros elementos encontrados na área externa da escola.
Foram organizados momentos em que as crianças interagiram com os instrumentos musicais da Caixa Étnico-Racial, como pau-de-chuva, tambores e berimbaus, promovendo vivências sonoras que dialogavam com as culturas apresentadas, aguçando suas expressões artísticas e musicais.
Como culminância dessas atividades, realizamos um evento especial, apresentando todos os trabalhos realizados por todas as turmas da unidade. Tivemos a participação de um responsável de uma das crianças da turma em que sou regente, que proporcionou uma oficina de capoeira para todas as crianças e professoras da unidade escolar. Durante a oficina, além de vivenciar a prática do esporte, as crianças e os demais participantes aprenderam sobre a história e a importância da capoeira como expressão cultural afro-brasileira, que combina luta, dança, música e resistência.
Neste ano letivo, as crianças demonstraram grande interesse e curiosidade em todas as propostas, participando ativamente das atividades. Observou-se um envolvimento significativo tanto na interação com os materiais quanto nas discussões conduzidas durante as práticas pedagógicas. Essa curiosidade foi o ponto de partida para diálogos mais profundos sobre respeito, diversidade e representatividade, temas essenciais para a construção de uma educação infantil antirracista.
Podemos concluir que as experiências revelaram a importância de integrar práticas pedagógicas que promovam o letramento étnico-racial desde a primeira infância, reafirmando o papel do professor como mediador de uma educação que valoriza a diversidade cultural e combate o racismo. O evento de culminância, com a oficina de capoeira, consolidou os aprendizados, reunindo a comunidade escolar em uma vivência coletiva de grande significado cultural e pedagógico.
A implementação das práticas pedagógicas antirracistas ao longo do ano letivo de 2024, associada à culminância com a oficina de capoeira, gerou resultados e impactos significativos para as crianças, evidenciados tanto no desenvolvimento individual quanto no coletivo e na comunidade escolar. Dentre os impactos foram identificados os seguintes pontos: Valorização da Diversidade Cultural, pois as crianças demonstraram maior interesse e respeito pela diversidade cultural, reconhecendo e celebrando características próprias e dos colegas, como tons de pele, tradições e costumes. Isso foi perceptível durante as atividades artísticas e nos diálogos espontâneos, onde começaram a utilizar vocabulário relacionado à representatividade e à cultura afro-brasileira e indígena.
Através das contações de histórias e apresentação de símbolos as crianças desenvolveram uma sensibilidade maior em relação ao respeito às diferenças, promovendo atitudes mais empáticas no convívio com os pares. Isso contribuiu para fortalecer vínculos afetivos e reduzir comportamentos de exclusão.
As atividades também contribuíram para que as crianças negras se reconhecessem positivamente nos materiais e histórias trabalhados, fortalecendo sua autoestima. Paralelamente, crianças não negras ampliaram sua visão de mundo, valorizando as culturas apresentadas e integrando-as ao cotidiano escolar e compreendendo sua diversidade.
A culminância com a oficina de capoeira e a apresentação das atividades realizadas no bimestre foi fundamental para a interação entre as crianças, as famílias e a unidade escolar. As crianças demonstraram alegria em compartilhar a experiência com seus responsáveis, fortalecendo a relação entre escola e comunidade e promovendo um aprendizado que ultrapassa os muros escolares.
Esses resultados reforçam o impacto positivo de práticas pedagógicas que promovem o letramento étnico-racial na educação infantil. Ao fomentar o reconhecimento da diversidade como um valor essencial, as crianças não apenas ampliaram seu repertório cultural, mas também deram passos importantes na construção de uma visão de mundo mais inclusiva e respeitosa. Essa vivência inicial cria bases sólidas para a formação de cidadãos conscientes e antirracistas no futuro.
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