O Ciep Compositor Donga (7ª CRE), localizado no bairro da Taquara, nos inspira a entrar no túnel do tempo para lembrar os longos e acidentados caminhos trilhados pelo samba carioca. A trajetória de sucesso desse gênero musical, conectada ao desenvolvimento da indústria cultural da cidade, começou a ser delineada por uma geração de músicos populares, no início do século XX. Entre esses pioneiros está o violonista e compositor Ernesto Joaquim Maria dos Santos (1890-1974), ou melhor, o Donga de nosso Ciep. Ele não apenas foi o protagonista da primeira gravação de um samba no Brasil, Pelo Telefone, mas também teve participação ativa – junto com Pixinguinha e outros nomes – na difusão e orquestração da música popular, dentro e fora do país.
Uma corrente de músicos populares cariocas afirma que Donga e outros nomes da mesma geração (como Sinhô) não faziam samba, e sim maxixe. Essa versão da história é antiga e defendida, principalmente, por aqueles que colocam o samba “marchado”, surgido no bairro do Estácio e mais adequado ao desfile das escolas, como o marco inicial do gênero musical no Rio de Janeiro. Mas se, de um lado, o samba “amaxixado” de Donga e Sinhô não era o mais apropriado para os cortejos de carnaval, era, por outro, o melhor para a evolução dos casais nos salões de dança.
Toda essa disputa sobre a “paternidade” desse gênero musical se relaciona a uma luta sobre sua origem: seu nascimento estaria vinculado aos nagôs que vieram da Bahia, ou ele seria uma expressão cultural exclusivamente banto e carioca? E para acirrar ainda mais a contenda, Donga, frequentador assíduo da casa de tia Ciata, foi quem gravou, em 1917, a primeira música registrada como samba. Mais que isso: embora tenha nascido no Rio, era filho de Amélia Silvana de Araújo, uma das tias baianas que agitaram a vida cultural da cidade, no período pré e pós-abolicionista.
Trajetória
Nosso personagem foi criado junto às rodas de pagode e candomblé promovidas pela comunidade conhecida como Pequena África. Na adolescência, já tocava cavaquinho e violão, e participava das festas na casa de tia Ciata – ao lado de João da Baiana, Caninha, Pixinguinha e outros nomes lendários do núcleo embrionário do samba –, onde as músicas surgiam ao sabor do improviso dos participantes. Dizem os pesquisadores que Pelo Telefone foi uma das criações coletivas desse grupo. Donga, no entanto, registrou a composição como sua, na Biblioteca Nacional, no final de 1916 (posteriormente, deu parceria ao jornalista Mauro de Almeida). A música, gravada no ano seguinte pela Casa Odeon, foi um grande sucesso na cidade, ainda que, no período, a cultura popular fosse negada pelas elites.
Essa rejeição, contudo, estava longe de ser um consenso entre os mais abastados cidadãos cariocas. Até mesmo o então presidente da República, Hermes da Fonseca, já havia frequentado as festas na casa da tia Ciata. Além disso, a nascente indústria cultural do Rio de Janeiro começava a precisar de artistas para movimentar seus negócios e entreter o público. Não à toa, em 1919, Isaac Frankel solicitou a Donga e Pixinguinha uma pequena orquestra para animar a sala de espera do Cine Palais, do qual era gerente. Como os dois participavam do grupo Caxangá, criado por João Pernambuco, decidiram convidar seis dos mais de 15 músicos da banda para tocar no cinema.
Com Donga ao violão, o novo grupo foi batizado de Os Oito Batutas, e trazia em seu repertório maxixes e sambas “amaxixados”, choros, lundus, canções sertanejas... O sucesso foi imediato. A sala de espera do Cine Palais virou atração à parte, e seu tamanho não era suficiente para atender a todo o público que, muitas vezes, ficava do lado de fora. Entre os frequentadores do cinema e admiradores do grupo estavam vários nomes do alto escalão da cidade, como Irineu Marinho, Rui Barbosa, Ernesto Nazareth e Arnaldo Guinle. Menos de um ano depois da formação do grupo, os batutas foram chamados para tocar para o rei Alberto da Bélgica, que estava em visita oficial o país. E, em janeiro de 1922, embarcaram para Paris, custeados por Arnaldo Guinle. A temporada seria de um mês, mas prolongou-se até o final do mês de julho. De volta ao país, em meados agosto, o grupo participou das comemorações do Centenário da Independência e, em dezembro, embarcou para a Argentina, onde gravou um disco.
As décadas de 1920 e 1930 foram de grande sucesso para Donga, como compositor e por seu estilo pontilhado de tocar violão. Em 1926, entrou para o grupo Carlito Jazz, organizado para acompanhar a companhia francesa Bataclan, de teatro de revista, que se exibia no Rio de Janeiro. Com esse conjunto, viajou novamente para a Europa. Pouco depois, organizou a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, criada para realizar gravações para o selo Parlophon, pelo qual lançaram Carinhoso.
Os Oito Batutas continuavam vivos, gravando para a Odeon, mas, em 1928, mudaram o nome para Jazz-Band. No ano seguinte, formou a Orquestra Típica Donga, onde ele executava sambas e maxixes. Em 1932, tocando cavaquinho, banjo e violão, integrou os grupos Velha Guarda e Diabos do Céu, que reuniam alguns dos maiores instrumentistas brasileiros da época e acompanhavam cantores como Carmen Miranda, Sílvio Caldas e Mário Reis, entre outros.
Em 1940, Leopoldo Stokowski (maestro inglês radicado nos Estados Unidos) solicitou ao maestro brasileiro Villa-Lobos uma seleção dos mais representativos artistas da música popular brasileira para o Congresso Pan-Americano de Folclore. Donga estava entre eles, junto com Pixinguinha, Cartola, João da Baiana e Zé Espinguela. Das 40 músicas registradas no evento, só 16 chegaram ao álbum Native Brazilian Music, gravado pela Columbia. Entre essas, nove eram da autoria do violonista de estilo pontilhado.
Na década de 1950, por iniciativa de Almirante, o grupo Velha Guarda voltou a se reunir e a fazer shows de grandes sucessos. Donga morreu pobre, passou seus últimos dias na Casa dos Artistas, mas o legado deixado para a música brasileira e a cultura carioca o coloca no patamar dos personagens inesquecíveis de nossa história.